Espuma dos dias — Economia moderna do lado da oferta e o novo Consenso de Washington, por Michael Roberts

Seleção e tradução de Francisco Tavares

9 min de leitura

Economia moderna do lado da oferta e o novo Consenso de Washington

 Por Michael Roberts

Publicado por Next Recession em 8 de Junho de 2023 (original aqui)

 

A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington são modelos de uma nova estratégia global para sustentar o capitalismo dos EUA a nível interno e o imperialismo dos EUA a nível externo, como diz Michael Roberts.

 

                    Imagem de Erik Mclean in “a terra é redonda”

 

No mês passado, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, delineou a política económica internacional do governo americano. Fez um discurso fundamental porque, enquanto alto responsável, nele explicou em que consiste o chamado de “Novo Consenso de Washington” sobre a política externa dos EUA.

O Consenso de Washington original era constituído por um conjunto de dez prescrições de política económica consideradas como um pacote de reformas “padrão” destinado aos países em desenvolvimento em crise de crescimento. Ele seria fomentado por instituições sediadas em Washington, D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o Tesouro dos EUA. O termo foi usado pela primeira vez, em 1989, pelo economista inglês John Williamson.

As prescrições abrangiam políticas de promoção do livre mercado, como a “liberalização” comercial e financeira e a privatização de ativos estatais. Implicavam também políticas monetárias e orçamentais destinadas a minimizar os déficits orçamentais e a despesa pública. Era o modelo de política neoclássico aplicado ao mundo e imposto aos países pobres pelo imperialismo norte-americano e suas instituições aliadas. A chave era o “livre comércio” sem tarifas e outras barreiras, o livre fluxo de capitais e a regulação mínima – um modelo que beneficiava especificamente a posição hegemónica dos EUA.

Mas as coisas mudaram desde a década de 1990 – em particular, com a ascensão da China como potência económica rival globalmente, mas também diante do fracasso do modelo económico internacional neoliberal em gerar crescimento económico e reduzir a desigualdade entre as nações e dentro das nações. Particularmente desde o fim da Grande Recessão, em 2009 e da Longa Depressão dos anos 2010 em diante, os EUA e as outras economias capitalistas avançadas – normalmente consideradas como líderes – passaram a cambalear. A “globalização”, baseada no rápido aumento do comércio e dos fluxos de capitais, estagnou e inverteu-se. O aquecimento global aumentou o risco de catástrofe ambiental e económica. A ameaça à hegemonia do dólar expandiu-se um bocado. Era, pois, necessário um novo “consenso”.

A ascensão da China, com um governo e uma economia que não se curvam aos desejos dos EUA, é uma bandeira vermelha para os estrategas americanos.  Os números do Banco Mundial que se seguem falam por si. A quota-parte dos EUA no PIB mundial aumentou de 25% para 30% entre 1980 e 2000, mas nas duas primeiras décadas do século XXI voltou a cair para menos de 25%. Nessas duas décadas, a quota da China passou de menos de 4% para mais de 17% – ou seja, quadruplicou. A percentagem dos outros países do G7 – Japão, Itália, Reino Unido, Alemanha, França e Canadá – diminuiu drasticamente, enquanto os países em desenvolvimento (excluindo a China) estagnaram em termos de percentagem do PIB mundial, variando a sua percentagem em função dos preços das matérias-primas e das crises da dívida.

 

Quota parte na economia mundial

(percentagem do PIB global, em dólares dos EUA)

Fonte: WDI e cálculos de Bert Hofman (ver aqui)

 

O Novo Consenso de Washington tem como objetivo sustentar a hegemonia do capital americano e dos seus aliados mais jovens com uma nova abordagem. Sullivan: “Perante a acumulação de crises – estagnação económica, polarização política e emergência climática – é necessária uma nova agenda de reconstrução“. Os EUA têm de manter a sua hegemonia, disse Sullivan, mas “a hegemonia, no entanto, não é a capacidade de prevalecer – isso é o domínio – mas a vontade de outros seguirem (sob constrangimento) e a capacidade de definir agendas“. Por outras palavras, os EUA definirão a nova agenda e os seus parceiros mais jovens segui-los-ão – uma aliança dos que estão dispostos a serem liderados. Aqueles que não a seguirem podem enfrentar as consequências.

Mas o que é este novo consenso?  O comércio livre e os fluxos de capital e a ausência de intervenção governamental serão substituídos por uma “estratégia industrial” em que os governos intervêm para subsidiar e tributar as empresas capitalistas de modo a que os objectivos nacionais sejam atingidos. Haverá mais controlos comerciais e de capitais, mais investimento público e mais impostos sobre os ricos. Subjacente a estes temas está o facto de que, na década de 2020 e nos anos seguintes, será cada nação por si – nada de pactos globais, mas sim acordos regionais e bilaterais; nada de livre circulação, mas sim capital e trabalho controlados a nível nacional. E, à volta disso, novas alianças militares para impor este novo consenso.

Esta mudança não é nova na história do capitalismo. Sempre que um país se torna economicamente dominante à escala internacional, esse país quer o comércio livre e mercados livres para os seus bens e serviços; mas quando começa a perder a sua posição relativa, quer mudar para soluções mais proteccionistas e nacionalistas.

Em meados do século XIX, o Reino Unido era a potência económica dominante e defendia o comércio livre e a exportação internacional do seu capital, enquanto as potências económicas emergentes da Europa e da América (após a guerra civil) se baseavam em medidas proteccionistas e na “estratégia industrial” para construir a sua base industrial. No final do século XIX, o Reino Unido tinha perdido o seu domínio e a sua política passou a ser protecionista. Em 1945, depois de os Estados Unidos terem “ganho” a Segunda Guerra Mundial, o consenso entre Bretton Woods-Washington entrou em vigor e a “globalização” (para os Estados Unidos) regressou. Agora é a vez de os EUA passarem dos mercados livres para estratégias proteccionistas orientadas pelo governo – mas com uma diferença. Os EUA esperam que os seus aliados sigam também o seu caminho e que os seus inimigos sejam esmagados em resultado disso.

No âmbito do Novo Consenso de Washington, há uma tentativa, por parte da economia dominante, de introduzir aquilo a que se chama “economia moderna do lado da oferta” (MSSE).  A “economia do lado da oferta” era uma abordagem neoclássica apresentada como oposição à economia keynesiana, que defendia que tudo o que era necessário para o crescimento eram as medidas macroeconómicas, orçamentais e monetárias para assegurar uma “procura agregada” suficiente numa economia e tudo estaria bem. Os defensores da economia do lado da oferta não gostavam da implicação de que os governos deviam intervir na economia, argumentando que a macrogestão não funcionaria, mas apenas “distorceria” as forças de mercado. Nisso tinham razão, como demonstrou a experiência dos anos 70 em diante.

A alternativa da economia do lado da oferta era concentrar-se no aumento da produtividade e do comércio, ou seja, na oferta e não na procura. No entanto, estes defensores da oferta opunham-se totalmente à intervenção do Estado também na oferta. O mercado, as empresas e os bancos poderiam fazer o trabalho de sustentar o crescimento económico e os rendimentos reais, se fossem deixados em paz. Também isso se revelou ser falso.

Assim, atualmente, no âmbito do Novo Consenso de Washington, temos a “moderna economia do lado da oferta”. Isto foi delineado pela atual Secretária do Tesouro dos EUA e antiga presidente da Reserva Federal, Janet Yellen, num discurso ao Stanford Institute for Economic Policy Research. Yellen é a nova keynesiana por excelência, defendendo tanto políticas de procura agregada como medidas do lado da oferta.

Yellen explicou: “o termo “economia moderna do lado da oferta” descreve a estratégia de crescimento económico da Administração Biden, e vou contrastá-la com as abordagens keynesianas e tradicionais do lado da oferta“. Ela continuou: “O que estamos realmente a comparar com a nossa nova abordagem é a tradicional “economia do lado da oferta”, que também procura expandir o potencial de produção da economia, mas através de uma desregulamentação agressiva associada a cortes de impostos destinados a promover o investimento de capital privado“.

Então, o que é que é diferente? “A moderna economia do lado da oferta, pelo contrário, dá prioridade à oferta de trabalho, ao capital humano, às infra-estruturas públicas, à I&D e aos investimentos num ambiente sustentável. Todas estas áreas de enfoque visam aumentar o crescimento económico e resolver problemas estruturais a longo prazo, em particular a desigualdade“.

Yellen rejeita a antiga abordagem: “A nossa nova abordagem é muito mais promissora do que a velha economia do lado da oferta, que considero ter sido uma estratégia falhada para aumentar o crescimento. Reduções significativas de impostos sobre o capital não alcançaram os ganhos prometidos. E a desregulamentação tem um historial igualmente fraco em geral e no que diz respeito às políticas ambientais – especialmente no que diz respeito à redução das emissões de CO2.” De facto.

E Yellen refere o que já discutimos muitas vezes neste blogue. “Na última década, o crescimento da produtividade do trabalho nos EUA foi, em média, de apenas 1,1 por cento – cerca de metade do registado nos cinquenta anos anteriores. Isto contribuiu para um crescimento lento dos salários e das remunerações, com ganhos históricos especialmente lentos para os trabalhadores na base da distribuição salarial.

Yellen chama a atenção da sua audiência de economistas tradicionais para a natureza da moderna economia do lado da oferta. “O potencial de crescimento a longo prazo de um país depende da dimensão da sua força de trabalho, da produtividade dos seus trabalhadores, da capacidade de renovação dos seus recursos e da estabilidade dos seus sistemas políticos. A moderna economia do lado da oferta procura estimular o crescimento económico através do aumento da oferta de trabalho e da produtividade, reduzindo simultaneamente a desigualdade e os danos ambientais. Essencialmente, não estamos apenas concentrados em atingir um número elevado de crescimento de topo que é insustentável – em vez disso, estamos a apontar para um crescimento que seja inclusivo e ecológico“. Assim, a MSSE – moderna economia do lado da oferta – tem como objetivo resolver as falhas do capitalismo no século XXI.

Como é que isto deve ser feito?  Basicamente, através de subsídios governamentais à indústria, e não através da propriedade e do controlo de sectores-chave do lado da oferta. Como ela disse: “a estratégia económica da Administração Biden abraça, em vez de rejeitar, a colaboração com o sector privado através de uma combinação de melhores incentivos baseados no mercado e despesas directas baseadas em estratégias empiricamente comprovadas. Por exemplo, um pacote de incentivos e descontos para energia limpa, veículos elétricos e descarbonização incentivará as empresas a fazer esses investimentos essenciais”. E tributando as empresas tanto a nível nacional como através de acordos internacionais para acabar com a fuga aos paraísos fiscais e outros truques de evasão fiscal das empresas.

Na minha opinião, os “incentivos” e as “regulamentações fiscais” não produzirão o sucesso do lado da oferta mais do que a versão neoclássica da SSE, porque a estrutura existente de produção e investimento capitalista permanecerá amplamente intocada. A moderna economia do lado da oferta procura no investimento privado a solução para os problemas económicos, cabendo ao governo “orientar” esse investimento na direção certa. Mas a estrutura existente depende da rendibilidade do capital. De facto, é mais provável que a tributação das empresas e a regulamentação governamental diminuam a rentabilidade do que quaisquer incentivos e subsídios governamentais a aumentem.

A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington combinam a política económica nacional e internacional das principais economias capitalistas numa aliança de vontades. Mas este novo modelo económico não oferece nada aos países que enfrentam níveis crescentes de dívida e custos de serviço que estão a levar muitos deles ao incumprimento e à depressão. 

O Banco Mundial informou esta semana que o crescimento económico no Sul Global, excluindo a China, cairá de 4,1% em 2022 para 2,9% em 2023. Atingidos por uma inflação elevada, taxas de juro crescentes e níveis de dívida recorde, muitos países estão a ficar mais pobres. Catorze países de baixo rendimento já se encontram em risco elevado de endividamento, em comparação com apenas seis em 2015. “Até ao final de 2024, o crescimento do rendimento per capita em cerca de um terço dos EMDE será inferior ao registado nas vésperas da pandemia. Nos países de baixo rendimento – especialmente nos mais pobres – os danos são ainda maiores: em cerca de um terço destes países, os rendimentos per capita em 2024 permanecerão abaixo dos níveis de 2019 numa média de 6%.”

E as condições de empréstimo do FMI, da OCDE ou do Banco Mundial não se alteram: espera-se que os países endividados imponham medidas orçamentais austeras sobre as despesas públicas e privatizem as entidades estatais remanescentes. O cancelamento da dívida não faz parte da agenda do Novo Consenso de Washington. Além disso, como disse recentemente Adam Tooze, “Yellen procurou demarcar as fronteiras de uma concorrência e cooperação saudáveis, mas não deixou dúvidas de que a segurança nacional prevalece sobre qualquer outra consideração em Washington atualmente“. A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington são modelos, não de melhores economias e ambiente para o mundo, mas de uma nova estratégia global para sustentar o capitalismo dos EUA a nível interno e o imperialismo dos EUA a nível externo.

 

________________

O autor: Michael Roberts [1938-], economista britânico marxista. Trabalhou durante mais de 30 anos como analista económico na City de Londres. É editor do blog The next recession. Publicou, entre outros ensaios, Marx200: a Review of Marx’s economics 200 years after his birth (2018), The long Depression: Marxism and The Global Crisis of Capitalism (2016), The Great recession: a Marxist view (2009).

Leave a Reply